Maristela Eduardo Félix de Oliveira[1]
“Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.
Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.
Simone de Beauvoir
No dia 24 de junho de 2024, a disputa para a prefeitura de São Paulo trouxe à tona uma antiga discussão: a violência política de gênero. Ao discorrer sobre os candidatos à prefeitura em suas redes sociais, o candidato Pablo Marçal afirmou que a candidata Tabata Amaral não teria condições de ser prefeita de São Paulo por não ser casada[2].
A frase pode soar inocente, mas traz consigo uma gama de preconceitos oriundos do patriarcado.
Desde os primórdios da humanidade, foram delegadas à mulher as tarefas domésticas, a reprodução e o cuidado com os filhos. O patriarcado vigente à época não permitia que mulheres gozassem de seus direitos, dentre os quais destacamos os direitos políticos.
Historicamente, a participação política tem predominância masculina. No Brasil, somente em 1932, a mulher conquistou o direito ao voto.
No caso em análise, o candidato desqualificou Tabata somente por não ser casada, ignorando o seu brilhante currículo como cientista política − estratégia que, há muito, é utilizada para afastar mulheres das lideranças políticas. Esse tipo de fala retrata a prática de violência política de gênero, a qual podemos definir como o uso de força psicológica, desqualificação, diminuição de suas qualidades e até força física, praticada com o fito de intimidar e obstar o pleno exercício dos direitos políticos, dentre os quais o direito a representar seus eleitores, refletindo em discriminações e no uso de estereótipos misóginos.
Essa violência é uma constante, tanto no Brasil quanto em outros países pelo mundo. Na situação analisada, em que pese o fato de ser solteira não ser óbice a cargos públicos, o candidato utilizou-se de tal artimanha, aproveitando-se do preconceito enraizado no imaginário popular de que uma mulher solteira não tem capacidade de liderança ou autonomia para gerir uma cidade, um estado ou um país, simplesmente pelo fato de que não geriu uma família nuclear monogâmica.
Visando combater esse tipo de violência e discriminação, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, buscou a equiparação de direitos e a erradicação da discriminação de gênero, ao afirmar, em seu artigo 1º:
E mais, a referida Convenção aduz, em seu artigo 3º, o seguinte:
Os Estados-Partes tomarão, em todas as esferas e, em particular, nas esferas política, social, econômica e cultural, todas as medidas apropriadas, inclusive de caráter legislativo, para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem.
É preciso erradicar esse tipo de discurso machista e misógino, que viola os direitos das mulheres, em vários níveis, impedindo a livre manifestação política dessas e o direito constitucional ao sufrágio (poder de escolha de seus representantes e possibilidade de concorrer a cargos públicos eletivos).
Nessa senda, a referida Convenção dispõe, no artigo 7º:
Os Estados-Partes tomarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na vida política e pública do país e, em particular, garantirão, em igualdade de condições com os homens, o direito a:
a) Votar em todas as eleições e referenda públicos e ser elegível para todos os órgãos cujos membros sejam objeto de eleições públicas;
b) Participar na formulação de políticas governamentais e na execução destas, e ocupar cargos públicos e exercer todas as funções públicas em todos os planos governamentais;
c) Participar em organizações e associações não-governamentais que se ocupem da vida pública e política do país.
Trata-se, portanto, de direito humano, que deve ser garantido à mulher, qual seja, participar das decisões políticas de seu país, livre de quaisquer preconceitos.
Nessa linha de raciocínio, combater esse preconceito exige uma série de ações, como, por exemplo, as cotas de gênero em âmbito político, garantidas pela legislação eleitoral no Brasil. Além disso, faz-se necessária a elaboração de políticas de igualdade de gênero, bem como a erradicação de quaisquer tipos de violência contra a mulher.
Outro ponto a ser discutido é a educação sobre equidade de direitos em escolas e o debate científico em universidades. A legislação, por si, não é suficiente para combater o machismo. A mentalidade da sociedade sobre o papel da mulher no mundo deve acompanhar o avanço legislativo. Discursos como o reproduzido por Pablo Marçal devem ser combatidos com educação. Somente uma sociedade equânime pode mudar esse quadro.
[1] Advogada criminalista, inscrita na OAB/DF e OAB/SP, com escritório em Brasília, São Paulo e Nova Iorque. Pós-graduada em Direito Penal. Doutoranda em Direito Constitucional. Membro da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas. Membro da Comissão da Advocacia Criminal na OAB/SP e da Comissão Permanente de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP, membro da União Internacional dos Advogados – UIA. Premiada com o Lex Falcon Global Awards – Índia 2024, na categoria: Emergin Indepent Practitioner of the Year (Criminal and Human Rights) e de mais 11 prêmios nacionais e internacionais. Coautora e Coordenadora na obra Empreendedoras da Lei Estados Unidos, pela GB editora. Coautora do livro: Todas da Lei – Ressignificando o Sistema: Feminismo, Lacunas e Resistência, pela GB editora, com o artigo: “Julgamentos no Brasil e Herança Patriarcal: Uma Análise do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”. Coautora em diversos artigos jurídicos nacionais e internacionais. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1841140385048221. LindkedIn: linkedin.com/in/maristela-oliveira-72983447. E-mail: maristela@moadvocacia.net. Site: www.moadvocacia.net.
[2] Vide o vídeo na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=A6EDesWQaQ4