A ocupação da politicidade por mulheres antifeministas: falar de gênero segue fundamental na democracia

 Emmanuella Denora 

As alterações nas regras eleitorais para o pleito municipal deste 2024, ainda em curso (o pleito e o ano), buscaram evitar duas ocorrências: a primeira, no que se chamou de candidaturas “laranja” pelas cotas partidárias de mulheres, a fim de fraudes no recebimento de valores do fundo eleitoral; e a segunda no que se convencionou a chamar de violência política de gênero, percebido que, ao inserir-se mulheres (cis e trans) e membros da comunidade LGBT+ em politicidade e representatividade ativa, as violências políticas tomavam características outras.

A palavra “gênero”, cuja elaboração acadêmica tem sido apropriada e desvirtuada, em períodos eleitorais ganha destaque, seja como pauta ampla, seja como pânico moral e conspiração, seja como movimentação inclusiva com o escopo de tornar os espaços das estruturas políticas institucionais assemelhados à composição demográfica. Em maior ou menor grau tem sido amplamente (e equivocadamente) usada como sinônimo de “mulheres” e/ou questões da comunidade LGBT+, como termo mais adequado para se afastar do binarismo biologizado.

Os conceitos são importantes quando se endereçam tratamentos normativos. A violência política de gênero, se há uma compreensão inclusivista, é plural: violências físicas, psicológicas, econômicas, morais, simbólicas (que refletem questões estruturais), que tenham no eixo gendrado seu mote – ou seja, por feminilidade, independente do sexo biológico, ou que não se enquadre nos padrões de gênero binários, mas também por questões de masculinidades, e todo o entre. Falar de gênero é muito mais do que um nome diferente para incluir mulheres na fórmula institucional política. Tratar de gênero politicamente é compreender que há relações estabelecidas na sociedade cujo marcador genital e performático prescindem como qualificadoras dos espaços possíveis de exercício de subjetividade e de atuação válida, e tal é imprescindível para o entendimento e a percepção de quem e de como se é legítimo no Estado e para quem esse Estado servirá.

O Código Eleitoral define violência política contra a mulher, apenas, como sendo “todo e qualquer ato com o objetivo de exclui-la do espaço político em razão do sexo, impedir ou restringir acesso ou induzi-la a tomar decisões contrárias às suas determinações”. Destaco aqui que a definição legal é binária como gênese e demarca o corpo sexuado – portanto, passível de exclusão de corpos trans e não binários – a partir da mulher em razão de seu sexo, numa redação legal inadequada e que segue normalizando os espaços políticos como masculinos. Portanto, não se fala de gênero. Quando muito se fala de mulheres cis, com alguma margem interpretativa, como o sujeito outro da política e a quem se responde em alteridade. Ao tratar de crimes eleitorais, pela principiologia da matéria, determinarão uma interpretação restritiva do tipo, analogamente à redação dada na qualificadora de feminicídio, em oposição às premissas da Lei 11.340/2006.

E é importante esse destaque de que falar de sexo não é falar de gênero. A diferenciação na linguagem é importante. Sexo é a marcação binária física, homem (xy) e mulher (xx); gênero são papeis atribuídos aos corpos, práticas sociais e culturais vinculadas a partir de noções de masculinidade e feminilidade e todo o entre, vinculativos e dependentes entre si, na ordem da reiterabilidade, como afazeres domésticos e ocupação de espaços políticos. A alteração do Código Eleitoral pela Lei 14.192/2021, na literalidade do art. 243, inc. X, “que deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia” agrega nesse conceito também elementos de raça e não é precisa conceitualmente, podendo vir a gerar discussões que, a despeito de amparar uma demanda social de inclusão, terão efeito ricochete excludente. A linguagem tem reflexos na interpretação normativa e em como sanções incidirão sobre esse tema. Para detalhamento, recomenda-se atenção à Resolução 23.735/2024, do Tribunal Superior Eleitoral, que condensou os ilícitos eleitorais e determinou sanções, a partir dos precedentes da corte sobre as fraudes às cotas partidárias.

Mulheres no poder nem sempre significa poder para as mulheres. E aqui endereço precisamente à utilização deste espaço construído com trabalho coletivo e em longo tempo, entre alianças e concessões, e que passa a validar mulheres que se posicionam como antifeministas e fazem desta pauta seus motes. Tal é especialmente cruel, porque implica em mulheres (portanto, válidas enquanto requisito partidário de sexo) utilizando-se dos espaços políticos conquistados pelo feminismo para atuarem contra tais conquistas, e através delas validarem e endossarem violências patriarcais.

A mera representatividade quantitativa a serviço qualitativo masculino segue robusta, diante do esvaziamento da discussão sobre papeis sociais atribuídos a corpos, e que reverberam em ausência de políticas públicas de cuidado e a quem o Estado prestará suporte, sobretudo a nível municipal. Mulheres cis seguem como as principais cuidadoras familiares, logo as principais oneradas por redução orçamentária e terceirizações, haja vista que os cortes invariavelmente se dão em saúde, educação, segurança e transportes, fundamentais para o cotidiano e para o dia-a-dia.

Tratar de gênero, de forma séria e coletivamente comprometida, segue como fundamental numa democracia. As condições eleitorais de campanhas competitivas de mulheres envolvem candidatas qualificadas nesses temas (e não em teorias da conspiração), coesas com o compromisso de inclusão de mais mulheres e de uma pauta de gênero de fato e das possibilidades da politização da vida e do cotidiano.

Emmanuella Denora. Advogada. Professora de Direito Constitucional (UEL). Doutora em Direitos Humanos e Democracia (UFPR).

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