Não há espaço seguro para as mulheres

Emmanuella Denora

Recentemente a jornalista Ana Clara Costa, em texto[1] para a Revista Piauí, teve a delicada e difícil missão de explicar o padrão, o modus operandi, de um assediador, ao reconstituir os detalhes que implicaram na exoneração do cargo de Ministro de Estado de Silvio Almeida. No texto, ela mapeia como assediadores utilizam seus espaços de poder para exerce-lo com finalidades outras, e operam de modo a fazer as vítimas serem desacreditadas e as vozes das mesmas desqualificadas, inclusive para si mesmas. Não quero falar desse caso em si, que ainda está sob investigação e que deve ter, judicialmente, o devido processo legal. Quero pensar um pouco como o poder e seus fios políticos afastam mulheres, por diversas vias, de acessa-lo, ao operar por códigos inerentemente masculinistas, e com isso confundir o poder em si mesmo com a própria noção do sujeito homem, inviabilizando-nos em segurança e potência.

Já sabemos que mulheres possuem restrições a acessos de cargos políticos de liderança, restrições estas legais, estruturais e pessoais. Quando tratamos de movimentos sociais, são sempre as mulheres “puxando o piano”, mas na hora de ocupar cargos nominalmente de liderança, tais cargos decisórios ficam ocupados por homens. Essa dinâmica não é novidade, e se relaciona com um sistema histórico de impossibilitação de mulheres em destaque político, seja pelo tempo que toma tais demandas, seja pela forma como os liderados internalizaram estruturalmente a misoginia. A própria Anielle Franco é um exemplo de liderança envolvida com a militância de base, enquanto Silvio Almeida não possui esse lastro, e ainda assim este ocupava um cargo nominalmente equivalente ao daquela, mas agia como um superior com ela.

Nos últimos anos, movimentos feministas de diversas ordens conseguiram abrir espaços e ocupar presenças por diversas vias. Fizemo-nos ouvir em demandas e conseguimos alterações legais, aprovação de cotas de participação, seguimos pleiteando paridade e já não aceitamos um protagonismo de fachada. Queremos e podemos estar em todos os lugares em que as decisões são tomadas, ainda que diretamente não falem de mulheres. Tratar de pautas de mulheres e de gênero deixou de ser apenas falar sobre violência contra a mulher em âmbito doméstico, ou de mortes contra a comunidade LGBT+ e feminicídio, mas também de demonstrar como as violências que nos atravessam fazem parte do poder instituído pelos homens em sua lógica masculinista para nos controlar e submeter também nas esferas públicas que passamos a adentrar nessas décadas.

E essas dinâmicas invariavelmente nos colocam insatisfeitas nas respostas que têm sido dadas politicamente nesta quadra, porque é um espaço resolutivo que ainda não conseguimos acessar integralmente, enquanto já temos alguma solução. Formar lideranças leva tempo, sabemos. Por sua vez, práticas consolidadas nas dinâmicas estruturais e estruturantes, igualmente, levam tempo para serem desfeitas e desnormalizadas. Por muito tempo o que agora entendemos inadequado e abusivo era compreendido como “liderança” e “pulso firme”, em posições hierarquicamente superiores.

Enquanto mulheres avançam nas conquistas de espaços e de qualificação, as estruturas masculinistas reagem e buscam se reacomodar nos lugares que compreendem naturais de si. Não a toa figuras extremistas vinculadas a grupos de direita são invariavelmente masculinistas. A expressão “angry white men[2] que intitula livro que observa essa coesão responsiva de grupo é adequada para a definição política dessa dinâmica – ciente de que tal identificação não é restrita a homens brancos, sendo esse um lugar comum de emulação de subjetividade, que pode ser apropriada por homens e mulheres marcados racialmente e que sejam marcados por identidades de gênero e orientação sexual outras que não a heteronormativa, bem como não é exclusiva de perfis de direita. Há signos culturais nos grupos políticos de diversas vertentes, mas em comum compartilham a misoginia, com a diferença de graus dos limites da violência política de gênero aplicada, e de como se manterem protagonistas – não há um plano, ao que consta, para afastar mulheres de posições de comando que habilitem suas conquistas coletivas, mas há uma não percepção de que isso seja uma questão de relevância política em si, o que implica que as demandas que atravessam essa pauta sejam vistas como perfumarias e de “costumes”.

E como isso se relaciona com assédio, afinal? Ora, assédio é sobre exercer controle por vias abusivas e ilegítimas, com o objetivo de alguma vantagem privada, que pode ou não ter cunho sexual, utilizando de uma teia de relações não formalizadas, sugestões e signos de violência que são conhecidos pelas partes, entre idas e vindas, entre apresentação social pública e ações privadas, para submeter a pessoa assediada a uma posição de obediência e medo, em confusão de suas próprias percepções. Na política essa linguagem de sugestões e indicações, nem sempre sutis, tem presença cativa, quase confundindo-se com a própria, e a linha que se atravessa é fina entre exercício de poder e assédio.

Por ocasião dos 05 anos do início da pandemia de covid-19, discutiu-se como na domesticidade as mulheres não estavam seguras, já que seus violadores e agressores tendem a ser pessoas próximas. O que se vê é que a violência contra as mulheres é mesmo uma oportunidade que se exerce, porque nos assujeita a uma estrutura de obediência e adequação masculinista. Seja privadamente ou em espaços públicos, em situações privadas, porque nossa palavra segue com menor peso. Não há espaço em que estejamos seguras, nem mesmo se você for Ministra de Estado, porque o desenho da institucionalidade é feito para que não caibamos, senão para servir aos interesses dos outros.

Não há espaço em que estejamos seguras, senão aqueles que estamos criando. E por isso é fundamental que estejamos nos espaços em que as decisões são tomadas, para que nossos signos e linguagem de subjetividades sejam considerados e validados com a importância e centralidade que têm.

 

Emmanuella Denora. Advogada. Professora de Direito Constitucional (UEL). Doutora em Direito (UFPR).

[1] https://piaui.folha.uol.com.br/a-anatomia-do-escandalo-que-derrubou-silvio-almeida/

[2] Para adquirir o livro, em inglês, que ainda não possui tradução: https://amzn.to/4iyu0Pr

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