CONSTANCE MOREIRA MODESTO PEREIRA DA SILVA[1]
DANISLÉIA DA ROSA[2]
Hoje, no Brasil, celebramos o primeiro Dia da Consciência Negra como feriado nacional. Como era de se esperar, tudo que envolve o reconhecimento e o combate ao racismo enfrenta resistência, e o feriado não foi exceção. Um caso emblemático ocorreu em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, onde o prefeito, de forma absurda, revogou o feriado nacional por meio de decreto. A situação foi levada à Justiça pelo Ministério Público do Estado (MP/RS), através de uma Ação Civil Pública. Considerada a afronta à lei federal, foi concedida liminar favorável à manutenção do feriado, sob pena de aplicação de multa em caso de descumprimento.[3].
Embora, para alguns, trate-se de um fato isolado, o epistemicídio do povo negro é cotidiano, sendo mais uma das várias manifestações do racismo e discriminação no Brasil. Não se garante sequer um feriado, tampouco a exaltação de Zumbi ou qualquer herói que possa representar a resistência negra contra a escravização, sem insurgências daqueles que sempre estiveram em condição privilegiada e espaços de poder. Atualmente a população negra representa 56,7% da população brasileira segundo dados levantados pela Pnad contínua do IBGE[4], entretanto, somente 55,4% destes encontram-se empregados e destes somente 33% em cargos de gerência e direção. Vejamo

E o que esses dados nos apresentam é que, ainda que desde os anos 2001, quando o Brasil tornou-se signatário da Declaração de Durban, onde afirmou o compromisso global de combater o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância, e em 2010 tenha instituído o Estatuto da Igualdade Racial, estamos distantes da equidade, uma vez que persiste a desigualdade social e um lugar subalternizado ao povo negro. Caso contrário, o resultado do seguinte gráfico, não se apresentaria de forma tão expressiva, quando falamos em ocupações com menores rendimentos:

Reflexo disso, é a aprovação na data de ontem (19/11/2024) do Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem como principal objetivo promover diretrizes para o julgamento de casos que envolvam questões raciais no Poder Judiciário, combatendo o racismo estrutural, garantindo o acesso à justiça com tratamento equitativo para a população negra e privilegiando o respeito aos direitos humanos.
O protocolo sepulta o mito da democracia racial, reconhecendo as profundas desigualdades estruturantes do nosso país.
O protocolo prevê também, a necessária formação inicial e continuada obrigatória dos magistrados e magistradas em matérias relacionadas a direitos humanos, gênero, raça e etnia, e ainda o fortalecimento de fóruns permanentes e incentivo a cooperações interinstitucionais a fim de que ao judiciário seja possível minimizar os efeitos do racismo estrutural e que aos magistrados seja possível identificá-los.
O sucesso dessa iniciativa do CNJ, precede de letramento racial, o que é esmiuçado em suas diretrizes, conduzido a atuação dos magistrados em trabalhos com grupos vulneráveis, e apresentando os impactos do racismo nas mais diversas áreas do Direito.
Conforme lecionam os ilustres professores Adilson José Moreira, Philipe de Almeida e Wallace Cobro, em seu Manual de Educação Jurídica Antirracista, o processo de letramento racial deve se iniciar com discussões sobre os sentidos biológicos, culturais, políticos e jurídicos dos conceitos de raça e etnia, ainda:
“É importante que todos e todas saibam diferenciar a raça como uma categoria biológica e a raça como uma categoria investida de sentidos culturais que determinam os diferentes lugares nas hierarquias de poder. É também muito relevante que todos tenham um entendimento sobre o que é racismo e suas diferentes manifestações para que o debate sobre justiça racial seja o mais adequado possível. As pessoas envolvidas nessa discussão precisam estar cientes das distinções entre racismo, discriminação, dominação racial, projetos raciais, entre outros tópicos, todos necessários para a compreensão da dinâmica social de poder que gira em torno desse tema.”[7]
O protocolo apresenta orientações para que os juristas possam pensar como um negro, ao adotar uma perspectiva que considere as vivências da população negra, compreendendo o Direito de forma diversa, como um instrumento de transformação social. Essa abordagem leva em conta a situação social e política das pessoas envolvidas e impactadas por suas decisões, rejeitando o individualismo e o formalismo como parâmetros interpretativos. Esses parâmetros, por sua vez, representam a manutenção das estruturas que se pretende romper. Assim, o protocolo permite a adoção de uma perspectiva substantiva da igualdade, ao quebrar com a ideologia da neutralidade racial, que apenas perpetua desigualdades e invisibiliza as experiências e desafios enfrentados pela população negra.[8]
Tão importante quanto garantir o status de feriado nacional, reconhecendo os feitos de Zumbi no processo de abolição da escravatura e a representativa resistência dos Quilombos, é a promoção de ações concretas que reforcem a luta contra o racismo estrutural e que valorizem a cultura, a história e as contribuições da população negra, cujas mãos construíram o país.
O Dia da Consciência Negra deve representar o empoderamento da população negra e o compromisso de toda a sociedade com a promoção da igualdade racial. É fundamental que a população não negra assuma a responsabilidade de se conscientizar sobre as desigualdades existentes e se engaje em ações efetivas, para que, finalmente, possamos caminhar rumo à ABOLIÇÃO definitiva do racismo no Brasil.
Por uma consciência negra efetiva e transformadora.
[1] Advogada, Especialista em Direito da Comunicação pela Universidade de Coimbra – PT desde 2012, Especialista em Direito e Processo do Trabalho, membra relatora da Comissão das Mulheres Advogadas (CMA / OAB/PR), membra efetiva da Comissão de Igualdade Racial da OAB/PR. Integrante do Coletivo Todas da Lei.
[2] Advogada, Especialista em Direito e Processo Civil, membra relatora da Comissão das Mulheres Advogadas (CMA / OAB/PR), membra efetiva da Comissão de Igualdade Racial da OAB/PR. Integrante do Coletivo Todas da Lei. Integrante do Black Sister in Law
[3] Justiça determina que cidade do RS mantenha feriado do Dia da Consciência Negra; município havia transferido data. Disponível em:https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/11/19/justica-determina-que-cidade-do-rs-mantenha-feriado-do-dia-da-consciencia-negra-municipio-havia-transferido-data.ghtml Acesso em 19/11/2024.
[4] 20 de Novembro – Dia da Consciência Negra – Boletim Especial. Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2024/conscienciaNegra.html?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAaZusF2rdJehnxAStGsSShx4fEMtxW6cEOLSPT6IgmpVhbwsyone0tGYYQk_aem_eTWzFKyO_NH9abfX42MQiQ Acesso em 19/11/2024.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019.
[8] Idem