Consubstancialidade: analisando gênero, raça e classe

Ketline Lu

No meio acadêmico, especialmente nas discussões sobre gênero, temos percebido o uso frequente da noção de interseccionalidade como lentes para olhar as questões de gênero e raça. Nesse sentido, tal conceito de Kimberlé Crenshaw se revelou importante recurso para analisar a condição das mulheres, sobretudo das mulheres negras que são as mais vulneráveis na sociedade. A jurista estadunidense partiu do pressuposto de que as pessoas têm múltiplas identidades e que em razão disso operam sobre elas múltiplas discriminações ao mesmo tempo.

Embora não se negue a relevância dessa análise, especialmente se se busca transformação social das mulheres não brancas, há teóricas feministas que criticam construtivamente a interseccionalidade, uma vez que esse conceito tem fundamentação teórica insuficiente – a própria Crenshaw afirmou que focou no uso prático do seu conceito. Outra crítica que se faz em relação à interseccionalidade diz respeito à diversidade das categorias que admite, afinal novamente a própria autora do conceito dirá que seu uso pode ser diverso, podendo considerar outros fatores como idade, religião, sexualidade, por exemplo. Porém, ao admitir um uso tão amplo e diversificado, corre o risco de diluir a análise, de modo a perder o foco nos problemas que de fato são estruturantes na nossa sociedade – como gênero, classe e raça o são na sociedade brasileira, por exemplo.

Com isso no horizonte, o conceito da consubstancialidade, o qual compartilha do mesmo pressuposto epistemológico feminista da interseccionalidade (a ciência moderna dominante, ao se declarar neutra e objetiva, na realidade já está inscrevendo nessa noção seus valores e visões de mundo) se propõe a analisar a questão das mulheres, levando em consideração raça, classe e gênero como fatores centrais da compreensão da realidade na sociedade moderna, ainda que a análise de outras dimensões também tenha sua importância. Essa construção teórica foi feita por Daniéle Kergoat, socióloga francesa associada ao feminismo materialista, cujo objetivo é criticar a naturalização das diferenças sexuais com base na biologização do sexo.

As premissas da consubstancialidade partem da noção de que raça, classe e gênero são relações sociais e, como tais, são dinâmicas e históricas (têm contexto, lugar, tempo), portanto, não são dados a priori (como são as múltiplas identidades pensadas por Crenshaw). Nesse sentido, Kergoat defenderá que raça, classe e gênero não podem ser analisados como categorias ontologicamente distintas, mas sim como relações que se entrecruzam de forma dinâmica e complexa, se construindo e se ajustando reciprocamente. Quando se invisibiliza um fator de dominação, como comumente faz a interseccionalidade com relação à classe, se corre o risco de perder oportunidades pra criar estratégias de resistência contra essa dominação. Então, deve-se partir do pressuposto de que raça, classe e gênero estão em perpétua evolução e renegociação.

Considerando que a maioria das mulheres no Brasil em situação de maior vulnerabilidade são trabalhadoras e não brancas, pensamos que análises que privilegiam classe, raça e gênero – elementos estruturantes da sociedade – são essenciais para todas que procuram transformar a realidade social do país por meio de sua atuação e seus valores. Na nossa sociedade, tão marcada pela desigualdade social, tão profunda e tão injusta, porém, não vislumbramos a possibilidade de se negar ou negligenciar a questão de classe, pois é fundamental, com o que fazemos um convite a todas: sejamos honestas e coerentes com nossas posições teóricas – que afinal são também escolhas políticas – e busquemos sempre o bem de Todas!

CRENSHAW, Kimberlé Q. Beyond Entrenchment:: Race, gender and the New Frontiers of (Un)equal Protection. In: TSUJIMURA, Miyoko (ed.). International Perspectives on Gender Equality & Social Diversity. [S. l.]: Tokyo Univeristy Press, 2008. p. 81-98.

HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo social: Revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 61-73, 2014.

KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 86, p. 93-103, 2010. Disponível em: https://bit.ly/33YLXlT. Acesso em: 13 mai. 2024.

GARCIA, Amanda Kovalczuk de Oliveira. Interseccionalidade ou consubstancialidade: faz diferença para pensar a diferença? Revista Novos Rumos Sociológicos, [s. l.], v. 10, n. 18, 2022. Disponível em: https://revistas.ufpel.edu.br/index.php/sociologicos/article/view/4845. Acesso em: 13 maio 2024.

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