Maio: Uma reflexão crítica sobre a construção social da maternidade e seus reflexos na condição feminina e na sociedade

Por Constance Moreira Modesto Pereira da Silva e Nina Rosa de Lima

O mês de maio, tradicionalmente dedicado à celebração da figura materna, oferece uma oportunidade ímpar para aprofundarmos a reflexão sobre o papel da maternidade em nossa sociedade. Para além da exaltação, é fundamental analisar criticamente como a compreensão do que significa “ser mãe” foi historicamente moldada e quais as implicações dessa construção para a posição da mulher na estrutura social e para o desenvolvimento da coletividade.

A narrativa dominante apresenta a maternidade como um destino biológico inato, sustentada pela crença em um “instinto materno” natural e universal, que implicaria uma aptidão e dedicação exclusivas das mulheres ao cuidado. Contudo, a análise sociológica, antropológica e psicanalítica demonstra que o papel que a mulher desempenha na criação e no cuidado dos filhos é, em grande medida, um constructo social e cultural complexo. Essa elaboração não ocorreu ao acaso, mas se consolidou em contextos históricos específicos, atrelada a interesses e estruturas de poder que visavam, sobretudo, à organização da família e da força de trabalho de maneira conveniente ao patriarcado.

Ao atribuirmos o trabalho doméstico às mulheres, na lógica capitalista, estaríamos garantindo a qualidade e disciplina do produto mais precioso do mercado capitalista: a força de trabalho. E o trabalho de cuidado viria a garantir futura mão de obra, condição essencial para a produção em todos os estágios do desenvolvimento capitalista, considerada a particularidade e a centralidade da família, trabalho doméstico e da maternidade em discursos radicais, é de se observar que estas sustentam a produção capitalista,[1] que embora variem de país para país, tem sua centralidade no papel desempenhado pela mulher no ato contínuo[2] entre o trabalho assalariado e o trabalho doméstico, justificando-se pelo afeto. Em verdade, com a emancipação da mulher e a inclusão desta no mercado de trabalho através do trabalho assalariado, este fato nunca eximiu nenhuma mulher do trabalho de cuidado, escolas e creches nunca nos liberaram qualquer tempo para nós mesmas[3], somente para mais trabalho, resultado disso é uma sociedade que hoje debate burnout materno, a sobrecarga materna, como doença de trabalho, mas que não enxerga o trabalho de cuidado como algo a ser remunerado, relegando a mulher a performance da produtividade profissional e invisibilizando o trabalho doméstico exercido para além da jornada de trabalho.

Ao definir a mulher primordialmente por sua função reprodutiva e de cuidado no âmbito privado, limitou-se significativamente seu acesso e atuação na esfera pública – na política, na educação formal, nas profissões, nas artes e em tantas outras áreas do conhecimento e da ação humana. Essa limitação não apenas restringiu o desenvolvimento pleno das capacidades individuais femininas, como também se tornou um mecanismo eficaz de controle social sobre os corpos e as vidas das mulheres.

A ideologia da “mãe natural” impõe expectativas elevadas e normatiza a sobrecarga, dificultando a autonomia e a igualdade de oportunidades em todos os aspectos da vida. A mulher recebeu a tarefa de cuidar dos outros, não de maximizar seu próprio ganho, aos homens sempre foi garantido o privilégio de se mover pelos seus interesses pessoais, enquanto para as mulheres, essa característica segue sendo um tabu, para a sociedade, a mulher não pode ser livre e nem racional, uma vez que o parto e a menstruação a amarraram ao corpo, e o corpo foi identificado como o oposto da razão[4], trata-se de um instinto, o dever de conservar o frágil amor, o cuidado e não de uma imposição social.

A psicanalista Vera Iaconelli, em sua obra “Manifesto Antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução”[5], aborda a complexidade desse quadro, argumentando que o cuidado com a próxima geração é uma tarefa que transcende a biologia e configura-se como um desafio político e social. A psicanálise, nesse sentido, oferece ferramentas para desnaturalizar o discurso sobre a maternidade, revelando as pressões inconscientes e sociais que atuam sobre as mulheres e a forma como a própria subjetividade feminina é moldada por essas expectativas impostas pelo contexto cultural. Com especial atenção ao cuidado, este não apenas uma atitude atenciosa, mas que abrange um conjunto de atividades (deveres) materiais e de relações que consistem em trazer uma reposta concreta às necessidades dos outros.

Essa desnaturalização da maternidade ganha ainda mais relevância quando consideramos as realidades da parentalidade contemporânea. Conforme Iaconelli explora em “Criar filhos no século XXI”[6], as mulheres se veem diante de desafios complexos para conciliar as intensas demandas da maternidade com suas aspirações profissionais e pessoais. Em um mundo que ainda carece de estruturas robustas de apoio e corresponsabilidade – seja por parte dos parceiros ou de políticas públicas –, o equilíbrio almejado torna-se uma luta constante, evidenciando as lacunas sociais que persistem na promoção de uma parentalidade verdadeiramente compartilhada e equitativa. Onde atribui-se somente à mulher a responsabilização pela vida e bem estar do outro[7], devendo sempre priorizar alguém para poder ter outros objetivos, dizendo-se por “alguém” uma vez considerado que para além da maternidade o trabalho de cuidado dos idosos é preponderantemente desempenhado por filhas, noras ou cuidadoras, ou seja, remuneradas ou não, profissionais ou não, este trabalho é atribuído à mulher.

A persistência dessa construção social tem impactos profundos na vida das mulheres e na dinâmica social. A imposição do cuidado como responsabilidade primária feminina contribui para a desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Para além da jornada profissional remunerada, muitas mulheres enfrentam uma “segunda jornada” não remunerada, assumindo a maior parte das responsabilidades domésticas e de cuidado com a família, fenômeno amplamente documentado pela socióloga Arlie Hochschild[8] em suas pesquisas. Sua obra detalha como essa dupla carga cria uma “lacuna de lazer” para as mulheres e aprofunda as desigualdades de gênero dentro dos lares, afetando desde o tempo livre e o descanso feminino até suas oportunidades de progressão na carreira e bem-estar geral, impactando a saúde mental e física das mulheres e limitando sua participação plena na vida pública. A natureza altruísta das mulheres, as ligava à esfera privada, sendo economicamente e politicamente irrelevantes.[9]

Para a sociedade, em verdade, a perpetuação desse modelo implica a perda de talentos, perspectivas e contribuições que poderiam advir do pleno desenvolvimento e atuação das mulheres em todas as esferas. A ausência de uma corresponsabilidade efetiva no cuidado e a escassez de suporte social e comunitário são falhas sistêmicas que derivam dessa visão restritiva da maternidade.

Compreender que a maternidade, nos moldes em que é majoritariamente concebida, é uma construção cultural utilizada como instrumento de controle é essencial para avançarmos em direção a uma sociedade mais justa e equitativa para todos. Isso implica lutar por uma reestruturação social que promova a divisão equitativa das responsabilidades parentais e do cuidado, que garanta suporte real às famílias e que, fundamentalmente, reconheça e valorize as mulheres em sua integralidade, para além de um papel predefinido pela biologia ou pela tradição cultural.

Bell Hooks sintetiza o que pretendemos traduzir com o presente artigo, quando em seu livro “O Feminismo é para todos” fala sobre “Casamento e Companheirismo libertadores”, ao referir que a contribuição do feminismo à emancipação sexual das mulheres, garantindo que mulheres e homens pudessem ter relacionamentos sexuais mais satisfatórios, levou a crer que essas mudanças nos laços sexuais poderia induzir a uma alteração do comportamento nos relacionamentos domésticos, em que os homens passariam a corresponsabilizar-se em tarefas domésticas e cuidado com as crianças, uma realidade que jamais se tornou norma, uma vez que estes mesmos homens que “aceitavam” a igualdade entre as quatro paredes dos quartos, não estendiam essa igualdade para os outros cômodos, principalmente quanto aos afazeres domésticos, trazendo como solução a contratação de “mais uma” mulher, para desempenhar a função que poderia lhes ser atribuída, ao invés de rever os próprios privilégios. E isso não se limita às relações heterossexuais, porque é tarefa atribuída a quem gerou, revolvendo à biologicidade.[10]

Para que possamos avançar, faz-se imperativo que os homens, ou aqueles que não geraram, estejam dispostos a trabalhar com dedicação o cuidado das crianças de das casas. Quando falamos em paternagem, não estamos opondo ao conceito de maternagem, pelo contrário, mas que se designe aos homens a mesma responsabilidade atribuída as mulheres no bem-estar das crianças e com a distribuição dos afazeres domésticos, seja possível se falar em equidade de gênero. Quando atribuímos a parentalidade o dever de cuidado, estamos garantindo que as relações sejam melhores, sem disputas de poder, estando juntos ou separados, objetivando a construção de uma sociedade em que os indivíduos sem antissexistas e que possamos romper com o conceito que muitas de nós mulheres letradas temos de que uma carreira mais competitiva e reconhecimento profissional prescindem que abdiquemos o amor. E também para que as crianças entendam que não há um determinismo biológico, em que as mães são figuras superpoderosas e suficientes, mas que os pais podem exercer a parentalidade com a mesma segurança e cuidado, efetivando o princípio do melhor interesse da criança.[11]

Todos ganharemos com a equidade de gênero, em um primeiro momento permitindo que cada indivíduo possa se afirmar, se realizar, e posteriormente satisfeitos possamos educar as crianças sem que a sobrecarga materna seja uma característica social reforçada em ambiente familiar.

[1] FEDERICI, Silvia. O patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero e feminismo, volume 1. São Paulo: Boitempo, 2021. p. 28.

[2] HIRATA, Helena. O cuidado: teorias e práticas. São Paulo: Boitempo, 2022. p. 34.

[3] FEDERICI, Silvia. O patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero e feminismo, volume 1. São Paulo: Boitempo, 2021. p. 30.

[4] MARÇAL, Katrine. O lado invisível da economia: Uma visão feminista do capitalismo. São Paulo: Alaúde Editorial, 2022. p. 37.

[5] IACONELLI, Vera. Manifesto Antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

[6] IACONELLI, Vera. Criar filhos no século XXI. São Paulo: Contexto, 2019.

[7] HIRATA, Helena. O cuidado: teorias e práticas. São Paulo: Boitempo, 2022. p. 30.

[8]  HOCHSCHILD, Arlie Russell; MACHUNG, Anne. The Second Shift: Working Families and the Revolution at Home. New York: Viking Penguin, 1989.

[9] MARÇAL, Katrine. O lado invisível da economia: Uma visão feminista do capitalismo. São Paulo: Alaúde Editorial, 2022. p. 38.

[10] HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempo, 2020. p. 109 -117.

[11] Idem, p. 117-125.

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