Notas sobre o Feminismo Camponês Popular

Por Ketline Lu[i]

O feminismo é um movimento social e político que vem alterando profundamente a forma com a que olhamos o mundo e a nós mesmas, denunciando as desigualdades entre homens e mulheres e nos inspirando a lutar por uma vida mais digna para todas e todos. Temos visto cada vez mais movimentos sociais que se aliam e se combinam, revelando esforços comuns na construção de um projeto de um mundo melhor, a exemplo do feminismo negro ou asiático, que combinam questões de gênero e racismo, ou o ecofeminismo, que alia as questões ambientais às de gênero.  Há um movimento feminista em específico, no entanto, que merece um olhar atento de todas e de todos que se dedicam ao ideal de uma sociedade mais justa. Referimo-nos ao feminismo campesino popular.

É compreensível que o feminismo, em seus primórdios, tenha focado nas mulheres urbanas e de classes mais favorecidas, afinal foi nelas que as mulheres encontraram primeiro as condições políticas e teóricas para formular suas pautas por direitos. Porém é certo também que já naquele tempo mulheres trabalhadoras e camponesas, socialistas ou comunistas, lutaram por melhores condições de vida, desafiando a mentalidade dominante e conservadora, inclusive na Europa e nos Estados Unidos, onde suas contribuições têm sido sistematicamente minimizadas – basta ver, por exemplo, como as questões de classe são frequentemente ignoradas por autoras desses lugares, com exceções obviamente. Mas estamos em pleno século XXI, em um mundo injusto e desigual, razões pelas quais precisamos contribuir para o fortalecimento e o aprimoramento das lutas feministas.

Nesse sentido, verificamos que a trajetória do feminismo camponês popular no Brasil é uma relevante abordagem quando se discute direito das mulheres. Podemos verificar sua atuação pela defesa da pauta das mulheres trabalhadoras do campo, por exemplo, durante a última constituinte, em que importantes reivindicações foram discutidas, especialmente a reforma agrária e o reconhecimento das camponesas como trabalhadoras rurais. Denunciou-se na ocasião o projeto de desenvolvimento nacional excludente, iniciado durante o período da Ditadura de 1964 e que esteva a serviço do latifúndio e das classes dominantes, que impôs à sociedade a compreensão de que a terra, naquele momento (e por que não dizermos no momento atual também?), deveria ser vista como mera reserva de valor.

Contra essa concepção da terra como mero ativo para especulação financeira ou para continuidade da monocultura histórica, o povo do campo se organizou em sindicatos e movimentos sociais, entregando uma proposta de emenda popular à Assembleia Nacional Constituinte, que contou com 1 milhão e 200 mil assinaturas em prol de uma reforma agrária justa. Essa demanda foi proposta juntamente às questões de gênero, de forma equilibrada, a exemplo da vitória representada pela inserção do parágrafo único ao artigo 189 da Constituição da República, o qual estabelece o direito igual às mulheres e aos homens à concessão do título de domínio e de uso dos imóveis distribuídos em razão da reforma agrária. O projeto campesino, portanto, é a construção de uma sociedade mais justa e igual no campo, na qual os trabalhadores não sejam condenados à vulnerabilidade social, em prol do enriquecimento de poucos.

Depois disso e partindo dessa ideia, as mulheres trabalhadoras do campo organizaram-se, tomando emprestado importantes premissas do feminismo, pois não se viam contempladas nas organizações das quais eram integrantes. Suas demandas eram invisibilizadas ou desconsideradas, tidas como “menos relevantes”, razão pela qual as mulheres da roça decidiram se organizar, a fim de defender suas próprias pautas como estratégicas e importantes para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Suas pautas, no início se concentravam na luta pelo seu reconhecimento como trabalhadoras rurais e consequentemente outros direitos, tais quais à seguridade social, no que se inseriam previdência, saúde pública e assistência, bem como acesso à educação no campo. Hoje, é possível verificar ainda mais reivindicações, como as relativas ao próprio corpo, identidade, soberania alimentar e contra todo tipo de violência cometida contra mulheres.

Um importante movimento feminista e campesino brasileiro que merece destaque é o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), que surge nacionalmente em 2004, após dois longos anos de debate no contexto da Coordenadoria Latino-Americana de Organizações do Campo – Via Campesina. Declarando seu caráter classista e feminista, se identifica como um movimento de camponesas agricultoras, meeiras, ribeirinhas, extrativistas, indígenas, negras e descendentes de europeus, das terras, das águas e das florestas. Sua luta é contra o patriarcalismo, o capitalismo e o racismo, que exploram toda a classe trabalhadora, especialmente as mulheres. Por isso, se considera também um movimento político, comprometido com as mulheres camponesas no contexto do Brasil e da América Latina, razão pela qual também se identifica ideológica e conceitualmente, conforme é possível verificar na sua produção teórica disponível em sua biblioteca digital (quem tiver interesse em conhecer mais, o site do movimento é <mmcbrasil.org>).

As pautas feministas não se excluem, pelo contrário, se complementam e em sua diversidade formam uma unidade, cuja finalidade é a libertação das mulheres. Não podemos desconsiderar, por outro lado, que cada grupo de mulheres tem suas especificidades, com o que, neste singelo artigo, convidamos todas para sempre ter essas diferenças no horizonte. Será que a pauta que defendemos inclui todas? Como podemos construir pautas que não excluem outras mulheres se é que isso seria possível? As nossas exigências são as únicas, seriam elas as “mais urgentes” ou “mais importantes”? Podemos avançar na conquista por direitos deixando outras mulheres para trás? É um exercício difícil, sabemos bem. Mas quem sabe renda bons frutos. Os exemplos do MMC e do movimento feminista camponês são boas orientações para as quais direcionar o pensamento também.


[i] Ketline Lu é advogada e gestora da Fundação Escola do Ministério Público (FEMPAR). Mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Constitucional pela Fempar e em Direito Ambiental pela Uninter. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Articulista do jornal Brasil de Fato Paraná. Membra do Coletivo Todas da Lei.

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