Catarina AC de Araújo
O conceito de interseccionalidade não é novo e vem sendo utilizado com mais frequência nos dias atuais. Foi criado em 1989 pela ativista americana, Kimberlé Crenshaw, quando começou diante de seus estudos, a observar a violência contra as mulheres de classe mais desfavorecida, bem como o racismo presente na sociedade americana, não somente individualmente nas pessoas, como principalmente nas instituições.
Tentando sistematizar o conceito de conhecimento situado de mulheres negras, a ativista propôs a interseccionalidade como sensibilidade analítica e hermenêutica no campo da teoria critica feminista de raça, e assim como essas mulheres poderiam ser representadas e compreendidas pela sociedade.
Em um artigo publicado em 1989, a ativista trouxe a ideia de desmarginalizar a interseção entre raça e sexo, com uma crítica feminista negra para políticas antirracistas, com o objetivo de descrever sobre o posicionamento/localização da interseccionalidade e violência contra as mulheres negras.
Em um primeiro momento, observando os problemas na área trabalhista em relação às condições de trabalho discriminatórias nos EUA, a ativista mostrou o quanto a doutrina jurídica antidiscriminatória norte-americana naquele momento, desconhecia ou desconsiderava especificidades da experiência interseccional de mulheres negras em relação às mulheres em geral.
Assim, diante de todo esse cenário, a interseccionalidade passou a ser uma ferramenta metodológica e teórica utilizada pelas mulheres feministas negras para que possamos pensar sobre os reflexos do patriarcalismo, racismo e sexismo ainda muito presentes em diferentes sociedades e suas consequências para essas mulheres.
Não bastando que as mulheres negras sofressem as desigualdades de gênero, também esteve e ainda se faz presente a discriminação por raça/etnia, idade, religião, classe social e até deficiência. Portanto, mesmo que exista um conjunto contendo diferentes pontos discriminatórios (marcadores sociais), pode haver um ponto em comum de interseção: a interseccionalidade.
Assim, os marcadores sociais estariam nos colocando em diferentes posições sociais, as quais representariam as demandas dessas mulheres a serem reivindicadas socialmente. O foco de destaque da interseccionalidade é explicar os múltiplos aspectos de identidade, considerando a visão de como é construída uma realidade social.
Para explicar melhor a temática abordada, surge o movimento feminista liderado por mulheres brancas, que estavam preocupadas em adquirir os mesmos direitos que os homens, por exemplo, seu lugar na sociedade, sua inserção no mercado de trabalho, já que até então, somente os homens poderiam trabalhar e chegar ao poder (cargos de liderança nas empresas).
Entretanto, em se tratando das mulheres negras, estas já estavam inseridas no trabalho, nos espaços públicos, mas em posições muito inferiores. Aqui se insere a interseccionalidade, ou seja, o gênero mulher, mas em cenários distintos com múltiplas características.
É bem verdade que mulheres brancas são mais bem sucedidas profissionalmente, apesar de ainda existir um imenso empecilho em relação à ocupação destas para cargos executivos; enquanto que as mulheres negras em sua grande maioria estão trabalhando na informalidade e as barreiras para entrada no mercado de trabalho são ainda muito maiores.
Portanto, essa realidade é um reflexo do processo de escravização ocorrido nos tempos do Brasil colonial, mas que infelizmente ainda repercute até os tempos atuais.
Em tempos coloniais, a mulher negra cuidava da família colonial com suas habilidades culinárias e domésticas, equiparando-se hoje a empregada doméstica nesse mundo moderno em que vivemos.
Entretanto, com o avanço das sociedades e movimentos sociais de resistência surgindo, as mulheres negras começaram a questionar a naturalização da desigualdade entre grupos diversos, até mesmo entre as mulheres negras e brancas; assim questionando-se também a violência majoritariamente contra mulheres negras de regiões mais humildes, mostrando a necessidade de reconhecimento e legitimação destes grupos oprimidos.
Desta forma, quando questionando o gênero mulher, as mulheres negras utilizam inicialmente o racismo como ponto de diferença existente no grupo feminino, ou seja, o objetivo é mostrar que apesar de todas serem mulheres, existem realidades diferentes entre a mulher branca e a mulher negra.
Além do racismo, outro marcador social bastante presente em nossa sociedade é o sexismo, que vem sendo demonstrado com a supervalorização do corpo e sensualidade da mulher negra, no caso a mulata que é um grande destaque, principalmente no período de carnaval. A mulher é vista como um objeto de satisfação sexual do homem.
Podemos usar a interseccionalidade para criar políticas públicas que corrijam essas diferenças ou pontualidades nas sociedades. Daí a grande importância em termos um olhar para o tema, aqui discutido.
A interseccionalidade traz um conjunto de pautas para discussão e entendimento da existência de mulheres com características distintas, fazendo com que repensemos não somente em gênero, mas também em diversidade, inclusão, religião, classe social e equidade de gênero, pois existem diferentes mulheres em diferentes situações e cenários.
Uma mulher brasileira vive uma realidade social, econômica e cultural do dia a dia totalmente diferente de uma mulher que vive em um país islâmico ou em um país europeu.
No Brasil, por exemplo, onde o machismo e o patriarcalismo ainda estão enraizados, certamente as pautas referentes a racismo, gênero e homofobia serão destaques e com isso, a empatia é fundamental para discussão sobre a temática.
Ressalta-se ainda que a interseccionalidade não está restrita a somente olharmos para o mercado de trabalho, pois vai muito além, já que existem outras peculiaridades como o acesso à educação, direitos básicos de saúde, direitos de inserção/representação na política (bancada feminina que ainda é muito inferior quantitativamente quando comparada a dos homens) e assim por diante.
É ainda através deste tema que poderemos compreender e refletir sobre as ações do movimento feminista negro e a vivencia desta fração da sociedade, que segue ainda oprimida e sofrida pelo racismo, sexismo, patriarcalismo e suas múltiplas situações de opressão, além de consequências como a vulnerabilidade política e social dessas mulheres.
Tudo o que nós queremos é uma sociedade mais igualitária, sem violência e sem discriminação, mais inclusão social, oportunidades iguais para todos. Enfim, onde TODAS tenham também o direito à liberdade de expressão que é um direito tangível que todas e todos possam exercê-lo. Queremos ser ouvidas e ter voz!
Bibliografia
Assis, D.N.C. 2019. Ebook: Interseccionalidade. Gênero, Sexualidade e Educação. Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Superintendencia de Educação a Distância.
Crenshaw, K. 1989. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. Disponível em: < https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1052&context=uclf> Acesso em: 26 julho 2024.
Leal, H.M. 2021. A interseccionalidade como base do feminismo negro. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 39: 21─32.
Nór, B. 2022. Notícia: Você sabe o que é interseccionalidade? Entenda porque isso é importante. Disponível em: <https://www.insper.edu.br/noticias/voce-sabe-o-que-e-interseccionalidade-entenda-por-que-isso-e-importante/> Acesso em: 22 julho 2024.