Por Nina Rosa
Na tarde de 27 de novembro de 2024, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 18/2024, que visa proibir qualquer tipo de aborto no Brasil, independentemente das circunstâncias. A aprovação é um marco controverso, reacendendo debates sobre o tema em um país profundamente polarizado. No entanto, mais do que discutir os méritos ou deméritos do aborto, é essencial destacar o que esta PEC representa: um exemplo evidente de sexismo institucionalizado no tratamento das responsabilidades reprodutivas.
Atualmente, após a aprovação na CCJ em novembro de 2024, a PEC aguarda a criação de uma comissão especial na Câmara dos Deputados para análise de mérito, antes de seguir para votação no plenário.
Se aprovada em todas as instâncias legislativas, a PEC vai impor à mulher uma obrigação absoluta de levar qualquer gestação a termo, sem levar em consideração sua saúde, suas circunstâncias pessoais ou até mesmo os contextos mais extremos, como gravidez resultante de estupro. Neste cenário, cabe perguntar: por que o ônus da reprodução recai exclusivamente sobre a mulher?
A mensagem implícita é clara: a mulher é sempre responsável. Se engravidar, é culpada, mesmo que contra sua vontade. Se decidir interromper uma gravidez, será criminalizada. Por outro lado, o homem, cujo papel na concepção é igualmente indispensável, não enfrenta o mesmo tipo de responsabilização criminal ou moral que recai sobre a mulher. Um pai que abandona o filho antes mesmo de nascer, seja emocional, seja financeiramente, não é tratado como um criminoso, muito menos como alguém que está, de certa forma, “abortando” sua responsabilidade. Um sistema que pune a mulher por uma gravidez indesejada e, ao mesmo tempo, poupa o homem de enfrentar as consequências de suas ações, apenas reforça a ideia de que o corpo feminino é um território público passível de controle, enquanto o masculino permanece intocável em sua autonomia.
Reflexo de um Congresso sexista e de uma sociedade desigual
O Congresso Nacional, com uma representação feminina de aproximadamente 18% (sendo 17,7% na Câmara dos Deputados e 19,8% no Senado Federal)¹, é um reflexo claro da desigualdade de gênero na sociedade brasileira. A aprovação desta PEC na CCJ não é apenas uma decisão legislativa, mas também um reflexo das prioridades de uma casa majoritariamente masculina, que insiste em regular o corpo da mulher, ignorando as nuances e complexidades que envolvem a maternidade e a paternidade. A disparidade é evidente: enquanto mulheres representam mais de 51% da população e 52% do eleitorado², sua voz no parlamento é sub-representada, o que permite que pautas tão sensíveis à sua autonomia sejam decididas por uma maioria alheia às suas realidades.
O que realmente está em jogo: Para além da legislação
Independentemente das convicções individuais sobre o aborto, é inegável que a PEC coloca o ônus de uma questão complexa exclusivamente sobre as mulheres. Em uma sociedade que já marginaliza as mães solo e frequentemente ignora as necessidades femininas, a proposta representa mais um passo para institucionalizar a desigualdade.
Essa desigualdade é ainda mais evidente quando se observa que, anualmente, mais de 172 mil crianças são registradas no Brasil sem o nome do pai³, e que a maioria das mães solo, que hoje somam 11 milhões, são mulheres negras, que enfrentam rendimentos significativamente menores⁴. O abandono paterno, um problema crônico e de impacto racial e social profundo, já sobrecarrega milhões de mulheres, especialmente as mais vulneráveis. Não se trata apenas de aborto, mas de como o Brasil, enquanto nação, decide enxergar e tratar suas mulheres.
Além do sexismo explícito, a proibição total do aborto, como propõe a PEC, ignora as graves consequências de saúde pública. A história e a experiência internacional demonstram que a criminalização não impede o aborto, mas o empurra para a clandestinidade, aumentando drasticamente os riscos de complicações e mortes maternas, sobretudo entre as mulheres de baixa renda e as negras, que já são as mais vulneráveis no acesso à saúde.
A proposta de proibição total do aborto ressoa em um cenário onde, mesmo o direito já garantido por lei, como em casos de estupro, é frequentemente negado na prática. Prova disso é o recente afastamento de uma juíza pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em maio de 2025⁵, por ter impedido o aborto legal de uma adolescente vítima de estupro em Goiás. Este episódio revela a violência institucional e o sexismo enraizado que operam para além das instâncias legislativas, dificultando o acesso de mulheres e meninas aos seus direitos reprodutivos e evidenciando a fragilidade da proteção legal em face de interpretações e convicções pessoais.
No fim, é indispensável que essa discussão vá além do debate simplista sobre ser contra ou a favor do aborto. Precisamos perguntar: por que as mulheres devem carregar sozinhas um peso que, por sua natureza, é compartilhado? E quando começaremos a responsabilizar, de maneira igualitária, todos os envolvidos na concepção de uma nova vida?
Em suma, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 18/2024 não se configura como uma genuína medida de proteção à vida, mas sim como uma tentativa de revestir de legalidade uma pauta de costumes, profundamente arraigada em convicções morais e religiosas individuais.
Ao focar exclusivamente na criminalização da interrupção da gravidez, a PEC mantém a conduta feminina como único objeto de julgamento e de reprovabilidade, ignorando a complexidade da reprodução humana e a responsabilidade de todos os envolvidos. Este é o mais claro reflexo do sexismo institucional que insiste em controlar o corpo e a autonomia das mulheres brasileiras.
REFERÊNCIAS
- CÂMARA DOS DEPUTADOS. Mulheres no Congresso. Disponível em: https://www.camara.leg.br/duvidas/5826-mulheres-no-congresso. Acesso em: 1 jun. 2025.
- IBGE. Censo Demográfico 2022. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-censo-demografico-2022.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 1 jun. 2025.
- CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Painel da Paternidade Responsável. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/paternidade-responsavel/painel-da-paternidade/. Acesso em: 1 jun. 2025.
- FGV SOCIAL. O Desafio da Maternidade Solo no Brasil. Rio de Janeiro: FGV Social, 2022. Disponível em: https://cps.fgv.br/estudos/o-desafio-da-maternidade-solo-no-brasil. Acesso em: 1 jun. 2025.
- G1. Juíza é afastada pelo CNJ por impedir aborto legal de criança de 13 anos em Goiás. Publicado em: 21 maio 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2025/05/21/juiza-e-afastada-pelo-cnj-por-impedir-aborto-legal-de-crianca-de-13-anos-em-goias.ghtml. Acesso em: 1 jun. 2025.