Ricochete e Acomodações: as feministas e os silenciamentos de pautas pelo Governo Federal

Emmanuella Denora

Os resultados eleitorais de 2024, referente às Prefeituras e Câmaras, mais uma vez deixaram estabelecidas algumas marcas e disputas políticas cada vez mais presentes. Os discursos feministas, não como uma “mera” avocação de mulheres empoderadas em si, e que ocuparam espaços, mas com projetos coletivos centrados em questões como maternidade, acessibilidade urbana, saúde, e educação, também direcionado a crianças e rede pública de apoio, somando-se a pautas já presentes como a de violência doméstica e redes de acolhimento e suporte, estavam postos e bem construídos, com lideranças jovens inclusive mostrando fôlego e preparo. Nesse mesmo grande campo de “pautas progressistas” e “inclusivas”, de diversidade na ocupação dos espaços políticos, também ficaram demarcadas posições importantes de representantes da comunidade ampla LGBT+. E como já previsto em minha coluna anterior, as figuras “anti” também se apresentaram, inclusive nas composições de mulheres “conservadoras” que defendem a não ocupação pública por mulheres, em papeis “tradicionais” de gênero e obediência. Também ganha espaço o ricochete (ou em linguagem contemporânea “backlash”) masculinista, que tem reforçado e empoderado, vejam só, a “energia masculina” nos espaços de comando públicos e privados, como um referencial de mundo interpretativo agressivo, de “coragem” e código moral de conduta em noções muito distorcidas de História e Império Romano.

Vou começar nos EUA, mas já chego no Brasil, prometo. No discurso de posse de Trump (20/01/2025), os recados foram claros de robustecimento interno, perseguição declarada a comunidades imigrantes irregulares (enquanto agradecia aos que já estão incorporados em cidadania americana), LGBT+ e negação de pessoas trans como existentes em si mesmas, as apagando de reconhecimento na própria linguagem. Nega-se formalmente a existência jurídica institucional a pessoas trans e não binárias, e as perseguições a uniões homoafetivas tendem a ficar mais vocais, como a homofobia e transfobia, na esteira da misoginia, primeira grande manifestação de ódio de onde as alteridades passam a ser derivativas em hierarquia, e já em curso por lá na criminalização do aborto (e que no Brasil sequer é tema possível de debate num governo “progressista” porque não se quer irritar os humores de setores religiosos). Os papeis de gênero, assim, serão estanques. O que implica nos (não) espaços de politicidade e pleito, e a dolosa escolha de Ivanka Trump em se vestir como a Serena Joy, personagem de “O Conto da Aia”, em que Atwood, já nos anos 1980, anteviu as questões de reprodução e gênero como centralidade política e de gestão autoritária de controle de corpos, da vida, da morte, e de como se interage com o mundo e com a derrocada ambiental, agora já tão real e presente.

Quando Trump, ainda na posse, diz que trata-se de um governo “colorblind” e fundado em “meritocracia”, estabelece o óbvio: só se tem mérito quem se está como igual e tem passabilidade, motivo pelo qual sustento (ciente da polêmica posição) que as noções de raças são de fato estruturais e presentes nas discriminações, como elemento segregador social, como a variação sistematizada de xenofobia, em gestão de vida e morte do Estado Moderno, politicamente relevante mas sem lastro em funcionalidades biológicas de reprodução humana. Tratar de gênero é algo dado como certo e comum, binarizado, na diferença fática e inerente das funções dos corpos sexuados, e estabelecidas suas demandas socialmente atribuídas em gênero; portanto, é estruturante e estrutural da noção de Estado. A masculinidade, por exemplo, marcada pela racialização ainda pode ser administrada nos espaços políticos outros de exibição de poder, como casas de prostituição, em que, via de regra, o objeto de dominação são corpos femininos (o que inclui mulheres trans e travestis). As posições não são novas, mas a centralidade que toma é algo que sustentamos como eixo limítrofe de segurança democrática. Tais posturas só beneficiam quem criou as regras do jogo: esses mesmos sujeitos homens brancos heteronormativos, mesmo que não sejam homens, nem brancos, nem heteros, atravessados na “energia masculina” que defendem desavergonhadamente.

Se as equivalências nos servem pedagogicamente, o atual Governo Lula, eleito como um dique de contenção do autoritarismo bufônico de seu antecedente, terá o mesmo destino da gestão Biden, devido a mesma estagnação em pautas caras a quem tem se sacrificado em tantas vias num mundo absolutamente mais complexo do que os das primeiras gestões do mesmo Presidente Lula. Aqui, como foi lá, o que já nos fica revelada pela queda de popularidade do Governo Lula e pelos resultados eleitorais de seu partido e tradicionais lideranças, um tanto anacrônicas, é que na prática os grupos de resistência tão atacados ficam desmobilizados: se demandam ao governo que ajudaram a eleger, são tratados como inadequados e silenciados, excluídos das reuniões, das representações, do orçamento e da justificativa habitual de que “agora não é hora”. Lula é um homem de seu tempo e teve o mérito de devolver, em 2022, a esperança de futuro. Entretanto seu governo tem muitas figuras revivendo um passado recente de méritos, sem observar o presente e como o futuro se apresenta pouco promissor. Se comprometer discursivamente com grupos historicamente em vulnerabilidade e com a urgência ambiental, por exemplo, é importante. Mas que democracia é essa que se defende, numa institucionalidade que desmobiliza apoiadores e acomoda opositores reforçando estruturas desenhadas para não nos acolher, enquanto condições possíveis de existência da vida humana?

O governo federal está contente com o título de Presidente e com as acomodações de seus burocratas, aparentemente, uma vez que extingue debates importantes como o da Vida Além do Trabalho, e não se esforça minimamente a ouvir o que temos a dizer. A enfrentar minimamente e nos colocar numa democracia participativa, debatendo e ampliando vozes, de modo ágil (ou menos moroso). O mundo mudou muito, as relações mudaram muito, a digitalização da vida virou uma inevitabilidade, e as respostas são ainda muito analógicas e sem transversalidade.

Sempre são as nossas demandas as que ficam para trás. Esvazia de autoridade e possibilidades os Ministérios (o de Direitos Humanos, por exemplo, tem várias secretarias com cargos desocupados, conforme o site do Governo; o das Mulheres opera pro forma, a Marina Silva está ainda mais desaparecida do que nos hiatos sem cargos eletivos e  Sônia Guajajara tem servido fotos, mas não muito mais). Como nos governos Lula anteriores, a moeda de troca são os nossos direitos… porque sempre somos nós que aceitamos o mínimo na ameaça do pior… Governos reacionários declaram que nos querem mortas, normativas e obedientes. Mas os silenciamentos e cabrestos dos “progressistas”, enquanto convenientemente utiliza nossas pautas para se projetar, apenas têm servido aos interesses de quem, ao fim e ao cabo, senta-se à boa mesa dos vinhos caros.

 

Emmanuella Denora. Advogada. Professora de Direito Constitucional (UEL). Doutora em Direito (UFPR).

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