Raissa de Cavassin Milanezi[1]
A série da Netflix, Bebê Rena, bombou nas redes sociais no último mês, trazendo à tona o debate sobre a perseguição e cyberstalking. Para aqueles que tiveram a oportunidade de assisti-la, a série deixa um alerta, pois pode acionar gatilhos e levar o telespectador a se questionar: se a situação ocorresse no Brasil, algo poderia ser feito? A lei brasileira tem uma legislação específica para tratar de tal temática?
Sobre o fenômeno da revolução tecnológica, Castells destacou que ela trouxe mudanças em todos os domínios da vida, já que ela, dentre suas diversas características, permite que a comunicação ocorra à velocidade da luz.[2] Nesta nova era, a tecnologia da informação proporciona transparência a atividades que antes eram totais ou parcialmente opacas.[3]
A exposição dos indivíduos na era tecnológica parece ser algo endógeno da própria sociedade: uma ida ao restaurante, uma foto, uma postagem; uma ida à praia, uma foto, uma postagem; um vídeo engraçado da filha, uma foto, uma postagem. Um momento feliz qualquer: uma foto, uma postagem. Nessa era de exposição, vive-se naquilo que Bill Chun Ran descreveu como sociedade da transparência[4], marcada justamente pela falta de privacidade e pela pressão da exposição.
Essa pressão pela exposição certamente já foi sentida por todos e todas nós e é cada vez mais presente nas redes sociais. A revolução informacional descrita por Castells nos anos 70 também introduziu uma nova forma de perturbar a tranquilidade psicológica de alguém[5], resultando, em 2021, na inclusão do crime de perseguição ao Código Penal.
Na definição de Nucci, o crime de perseguição, marcado pelo verbo “perseguir” significa, resumidamente, correr atrás de alguém, atormentar, importunar, causar aborrecimento, gerando na vítima o sentimento de aflição. Essa perseguição, pode ocorrer de forma a (i) ameaçar à integridade física, (ii) psicológica, (iii) restringir à locomoção e (iv) perturbar a esfera de privacidade de alguém de forma reiterada. Qualquer um pode ser vítima deste crime, independentemente do gênero.[6]
A prática do crime pode ocorrer de forma presencial ou em ambiente virtual/digital. Entretanto, independentemente do local em que o crime for cometido, se a conduta de perseguir for reiterada, o(a) agressor(a) poderá receber uma pena de reclusão de 6 meses a 2 anos. Na série Bebê Rena, a agressora realiza uma série de perseguições reiteradas contra a vítima, que vão desde o encaminhamento de diversos e-mails diários, realização de ligações insistentes até perseguição física. Tais condutas, se praticadas no Brasil, poderiam se enquadrar no crime de perseguição.
Para denunciar o fato, a vítima precisa comparecer até uma Delegacia de Polícia ou registrar o boletim de ocorrência online, guardando todas as provas que possui sobre a perseguição e encaminhando-as para a autoridade responsável. No entanto, esse tipo de crime precisa de representação da vítima, ou seja, ela tem que afirmar na Delegacia que quer ver o agressor sendo processado criminalmente.
O crime de perseguição possui um recorte de gênero, na medida em que ele ocorre majoritariamente contra mulheres. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o stalking é um fator de risco para feminicídios:
Em uma pesquisa realizada na Austrália e que envolveu a análise de 141 feminicídios e 65 tentativas de feminicídio, os autores verificaram que 76% das vítimas de feminicídio e 85% das vítimas de tentativa de feminicídio sofreram perseguição do agressor nos 12 meses que antecederam a ocorrência (McFarlane et al, 19993 ). Mesmo a perseguição no mundo digital tem sido apontada como fator de risco para a violência letal contra mulher, indicando que a tecnologia facilita o controle e uma violência onipresente contra a mulher (McLachlan, Harris, 20224).[7]
Portanto, nos casos em que a mulher é a vítima, a letalidade do stalking é ainda maior, segundo o levantamento indicado acima. Na série da Netflix, ainda que a vítima seja um homem, os números apontam a maior ocorrência do crime em desfavor de mulheres, sobretudo no contexto de violência doméstica, onde houve um crescimento em todos os indicadores de violência no ano de 2023.
Desta forma, é primordial que a sociedade esteja ciente sobre a gravidade do crime de perseguição, seja na forma online ou presencial. Aqueles que são vítimas deste crime, devem ser encorajados a denunciar e podem solicitar a fixação de medidas protetivas contra o(a) agressor(a). Além disso, é preciso ficar atendo com aquilo que compartilhamos em nossas redes, o compartilhamento constante de informações pode constituir munição para eventuais agressores. A exposição constante de fotografias aumenta a vulnerabilidade da vítima.
A série Bebê Rena é um lembrete para que a perseguição, seja ela online ou presencial, não deve ser tratada com banalidade, justamente em razão de seu potencial adoecedor e, nos casos de violência doméstica, de risco para condutas ainda mais graves.
[1] É mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, na área Direito Econômico e Desenvolvimento. Na graduação formou-se no curso de bacharelado em Direito do Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba, na pós-graduação lato-senso concluiu o curso de (i) Ciências Criminais e de (ii) Direito, Tecnologia e Inovação: Proteção de Dados. É pesquisadora dos seguintes grupos: (i) Observatório Social vinculado ao curso de Psicologia da Universidade Federal do Paraná; (ii) Sicret II; (iii) Novos Influxos na dogmática jurídico-penal: crimes complexos e Justiça Penal Negocial; (iv) GRAEDI/PUCPR. Membra das Comissões de Direitos Humanos e da Advocacia Criminal da OAB/PR. Advogada e professora universitária.
[2] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Trad. Roneide Venancio Majer. 24. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022.
[3] ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. Trad. Antonio Holzmeister Oswaldo Cruz e Bueno Cardoso. In: BRUNO, Fernanda; CARDOSO, Bruno; KANASHIRO, Marta; GUILHON, Luciana; MELGAÇO, Lucas. Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-68, p. 16-19.
[4] HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Lisboa: Relógio D’Água, 2013.
[5] MILANEZI, Raissa de Cavassin; FREITAS, Cinthia Obladen de Almendra;
EFING, Antônio Carlos. Capitalismo de vigilância e os reflexos na sociedade de consumo. Revista de
Direito do Consumidor. vol. 148. ano 32. p. 129-146. São Paulo: Ed. RT, jul./ago. 2023. Disponível em: inserir link consultado. Acesso em: 17 jun. 2024.
[6] Nucci, Guilherme de Souza. Código penal comentado / Guilherme de Souza Nucci. – 24. ed., rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2024. Ebook.
[7] Fórum Brasileiro da Segurança Pública. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 16 jun. 2024.