Violência de Gênero | “Adolescência”: quando a arte imita a vida

A série produzida originalmente pela plataforma de streaming Netflix alcançou em menos de uma semana o topo do ranking como a mais assistida em diversos países, inclusive no Brasil; pelos temas envolvidos, blogs, perfis, e sites dos mais diversos, passaram a comentar a produção.

O tema é absolutamente impactante pela crueldade que encerra: um garoto de 13 anos está implicado no assassinato a facadas de uma garota, colega sua da Escola; quando se usa a palavra “implicado” é para dizer que o garoto é mais do que o autor de um fato; é para refletir do profundo envolvimento do garoto e de muitos tantos outros garotos com esse apogeu de violência de gênero.

A filmagem é feita em planos-sequência, técnica que filma cenas sem emendas ou edições. O objetivo, segundo o Diretor de fotografia “foi criar uma sensação de tensão e nervosismo no decorrer das cenas e episódios”.[2] O resultado é esse mesmo, uma atmosfera que impacta, que espera e que afunda quem assiste pelo temor da resposta final para uma pergunta perturbadora: por que um garoto assassina uma colega de escola? Para muito além do talento de toda a equipe técnica, das atrizes e dos atores envolvidos, há uma névoa no ar, o impacto de uma revelação. Talvez muita gente estivesse torcendo para que o fato não fosse “verdadeiro”, ou seja, que o garoto não fosse o autor do assassinato; quem sabe houvesse alguma outra pessoa envolvida; quem sabe um indivíduo errático que tivesse se deparado com a menina e a matado.

Das matérias produzidas, como comentários gerais ou mais aprofundados, foram diversos os pontos de partida como também os de chegada. Nesse texto, o que fez questão gira em torno do que é tratado no episódio em que a psicóloga busca a motivação; motivação, que não haja dúvida, está muito além do elenco constante no nosso Código Penal (motivo torpe, motivo fútil). É nesse ponto que o que há demais profundo na série ganha evidência: um garoto sente-se autorizado (“eu não fiz nada de errado”, ele não diz: “eu não fiz nada”) a assassinar a facadas uma colega de colégio que o teria rejeitado e por isso ele está “implicado” nisso.

Eclodem aí, pelo alerta do filho do investigador de polícia, de que as autoridades, a escola, pais e mães, e quem exerce no geral atividades de cuidado e orientação, está muito pouco afeto: a linguagem fratriárquica compartilhada pelo masculino. Rita Laura Segato já narrou isso, pois a linguagem da fratria – que é elemento essencial de uma cultura, e no caso uma cultura de poder – é proferida em dois níveis: a) num nível vertical, de cima para baixo, que comunica não só à mulher atingida, no caso, uma menina, que não só ela pode morrer, como todas as demais podem; b) num nível horizontal, entre seus pares, no sentido de que um homem pode matar como também todos podem matar.[3]. O incremento é que os códigos de linguagem atualmente são também compartilhados em rede e numa linguagem inacessível às autoridades do sistema de justiça, da escola e da família. Memes, corações e pílulas produzem um outro sentido e, portanto, um significado completamente distinto para adultos e adolescentes. O obscuro também está aí, pois a linguagem dessa fratria é cifrada.

É da mesma Rita Laura Segato que se traz a categoria do ressentimento[4]. A garota está na proporção dos 80% das mulheres que se interessam por 20% dos homens, percentagem esta não ocupada pelo garoto. O modo de constituição de subjetividade contemporânea é praticamente on-line[5] e possui poucas modulações para administrar a frustração e lidar com o ressentimento da rejeição, do comentário feito e apagado, do encontro frustrado, do ego atingido que não encontra respostas no imediatismo do Instagram ou no vídeo do Tiktok, mas podem estar nos grupos do Telegram e do Discord. E por isso o assassinato absolutamente brutal escapa do simbólico (“eu queria matar”) e invade o real. Esse é o capítulo final do código da fratria que está, então, autorizado e protagonizado por um garoto que então se implica num assassinato.

A misoginia é uma herança do patriarcado que tem se mostrado transgeracional e suas permanências suscitam uma responsabilidade coletiva sobre como criar meninos e meninas, que estão muito mais imersos numa realidade virtual e que têm enormes dificuldades em dimensionar que o impacto virtual da “machosfera” produz no real assassinatos cruéis.

O primeiro ministro inglês determinou que a série seja exibida em escolas no Reino Unido[6]. A exibição sem mediação pode ser desastrosa, pois não se sabe como isso pode replicar em modelos de exaltação de uma masculinidade tóxica. Igualmente aqui a dimensão dessas intersecções importa em uma tomada de posição coletiva entre famílias, escolas e estado no intuito de assumir a existência de um problema que precisa a começar a ser enfrentado, do contrário as taxas de feminicídio não só continuaram a subir como também ter como garotos como autores e meninas como suas vítimas. Não que já não se tenha pistas disso aqui e ali.

[1] Especialização em Direito Processual Penal e Mestrado em Direito Econômico e Social pela PUCPR. Doutorado em Direito do Estado pela UFPR. Pós-Doutorado em Direito e Políticas Públicas pela UniCeub. Professora Adjunta licenciada da PUCPR e da UFPR. Desembargadora do TJPR, junto à 2ª CCr.

[2] V. Série “Adolescência” foi toda filmada em plano-sequência; entenda. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/serie-adolescencia-foi-toda-filmada-em-plano-sequencia-entenda/. Acesso em: 07 Abr. 2025.

[3] SEGATO, Rita Laura. La escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad Juárez. 1. ed. Buenos Aires: Tinta Limón, 2013. 

[4] SEGATO, Rita Laura. Entrevista por Florencia Vizzi e Alejandra Ojeada. Trad. Wagner Fernandes de Azevedo. Instituto Humanitas Unisinos. 2020. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596618-uma-falha-do-pensamento-feminista-e-acreditar-que-a-violencia-de-genero-e-um-problema-de-homens-e-mulheres-aponta-rita-segato. Acesso em: 01 nov. 2021.

[5] MESTRE, Cauana. Um tratado sobre nós: “Adolescência” e as trincheiras da subjetividade em tempos de ascensão da extrema direito. Blogdaboitempo.com.br. Acesso em: 31 de mar. 2025.

[6] Série Adolescência será exibida nas escolas britânicas. https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/04/01/serie-adolescencia-sera-transmitida-nas-escolas-britanicas.ghtml . Acesso em: 07 abr. 2025.

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