Por Letícia Parucker
Em outra coluna que escrevi aqui para Todas da Lei, ressaltei que as mulheres sempre foram educadas para que tivessem um comportamento que não ofuscasse o homem, colocando-as em um eterno papel de submissão.
Entretanto, nas últimas décadas as mulheres conquistaram diversos direitos e, com isso, uma maior liberdade. No Brasil, as primeiras escolas foram criadas em 1549, no período colonial, pelos jesuítas. Porém, foi somente no dia 15 de outubro de 1827, que uma lei reconheceu o direito das meninas e mulheres frequentarem as escolas, as quais eram separadas das escolas masculinas, bem como o ensino era diferente. Nas escolas femininas, o principal objetivo era ensinar a como cuidar da casa e da família (a famosa “arte do lar”). As meninas até aprendiam a ler e escrever, além da matemática extremamente básica, mas não tinham matérias como ciências e outras ditas mais “complexas e racionais”.
As mulheres foram ganhando mais espaço nas escolas, principalmente nas universidades. Entretanto, ainda precisavam pedir autorização, uma licença, para frequentar o ensino superior. No caso das mulheres solteiras, elas deveriam pedir essa licença para seus pais e no caso das casadas, deveriam pedir para seus maridos. Até 1962, as mulheres precisavam pedir autorização de seus maridos para inclusive trabalhar.
E por que trago estes dados? Ao analisarmos estas conquistas, percebemos que elas atingiram quase que somente mulheres brancas.
Por muito tempo consideradas frágeis e puras, as mulheres brancas deveriam apenas se esforçar para manter sua castidade enquanto solteiras e após casadas eram condicionadas ao papel de “dona de casa”, sendo responsável pelos cuidados e afazeres domésticos, além do cuidado de seus filhos, enquanto o homem trabalhava fora de casa para trazer o dinheiro e sustentar a família.
Diferentemente da mulher negra, por exemplo, que nunca foi tratada como um ser frágil e, por diversas vezes, submetida a trabalhos braçais pesados.
Percebe-se nitidamente esta diferença durante o período da escravidão, em que tanto homens negros como mulheres negras eram forçados a realizar os mesmos tipos de trabalhos para o seu senhor. E, apesar de todos os malefícios oriundos desta prática odiosa, as mulheres negras sofriam mais um tipo de violência: o estupro, normalmente praticado pelos seus senhores, os quais julgavam serem donos também dos corpos das mulheres escravizadas, transformando-os assim em meros objetos.
Como bem ressalta Angela Davis, no livro Mulheres, Raça e Classe, “como mulheres, as escravas eram inerentemente vulneráveis a todas as formas de coerção sexual. Enquanto as punições mais violentas impostas aos homens consistiam em açoitamentos e mutilações, as mulheres eram açoitadas, mutiladas e também estupradas. O estupro, na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprietário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na condição de trabalhadoras”.
Apesar da proibição da escravidão, bem como as diversas conquistas no campo dos direitos femininos, ainda nos dias atuais as mulheres negras vivenciam uma certa segregação baseada em racismo e machismo, mesmo com nossa Constituição estabelecendo a igualdade como um dos direitos fundamentais. Esta segregação acontece não somente com mulheres negras, mas também com mulheres indígenas e mulheres trans, por exemplo.
Ora, não é possível ignorar que esta diferença reflete de modo negativo até hoje quando abordamos a questão da violência baseada no gênero feminino. Afinal, ao considerar o comportamento submisso imposto às mulheres como algo natural, isto dificulta que as vítimas de violência doméstica sejam consideradas como pessoas que estão sofrendo uma agressão real e injusta. Esta dificuldade é aumentada quando acrescentamos o fator da raça e ignoramos as vulnerabilidades particulares deste grupo de mulheres, as quais enfrentam não somente a questão do sexismo, mas também com preconceitos referentes à cor da própria pele, com a desumanização e ultrassexualização de seus corpos.
Diante disso, a utilização de uma perspectiva interseccional demonstra-se extremamente necessária como um dos meios para evitar a invisibilidade destas mulheres, principalmente quando o assunto é violência de gênero. Como Kimberlé Crenshaw ressalta, é essencial e urgente analisar a “diferença dentro da diferença”, prestando atenção nas experiências destas mulheres e em suas necessidades.